17 de março de 2008

Capítulo 1


A Torre


A Torre – Carta XVI do Tarô – Sugere o fim. A destruição. O desastre. Mas há quem acredite no recomeço...


Titânia dormindo - Arthur Rackham

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Era madrugada. Quase sempre é essa a lembrança. Já faz tanto tempo, que poderia ser noite, ou mesmo, ter o sol alto, de uma tarde quente. Mas em dias de chuva forte, os que não dançam gostam de lembrar como Ajne chegou a Terra sem tempo. Nesses dias, a versão mais ouvida é a da hora da iminência.

Não havia orvalho pesando nas folhas quando o véu se abriu. Não há certeza nem sobre a existência das folhas. A espera. O que ainda não aconteceu. A matéria que dá forma ao porvir.

Deixara a certeza na cama desfeita; a esperança na porta que não teve tempo de fechar; o amor nas cartas não enviadas. Trouxe a agonia no bolso direito; o medo, no esquerdo; a solidão na barra do vestido. O sangue que lhe escorria quente, correria frio em suas veias. Nada mudaria as horas passadas.

Antes. Escolheu com primor a roupa, o perfume – de flor de laranjeira -, as palavras que seriam ditas. Calculou as reações. Ensaiou até a exaustão as caras e bocas que faria. Não precisou de nada disso. Perdeu. Simplesmente.

Ele. Rude. Acreditava-se detentor da razão, do poder e dela. Não era digno do amor oferecido. Tomou de assalto o que queria. O que lhe era importante. Ela sempre que fora uma boneca. Obediente, calada e decorativa. Agora não mais.

Sem trilha alguma, o campo era escuro o suficiente para acreditar que permaneceria perdida. A névoa fazia trança em seus pés, escondendo raízes e deixando seu vestido mais sujo a cada queda. Nenhum cavalheiro. Não se tratava de uma cantiga de roda. Não conseguia mais correr. Não tinha mais passos, nem determinação para isso e, vagava buscando caminho nenhum. Não tinha mais casa. Ou qualquer outro lugar que lhe parecesse um lar. Choraria, se isso mudasse algo. Mas nenhuma lágrima aqueceu seu rosto àquela hora.

Ajne fugia de uma lembrança. A que doía mais que todas as outras juntas. Não havia mais nada que pudesse fazer. Tão vívida que lhe sugara o pulso. Por mais que corresse, a lembrança continuava como um maldito filme, repetindo-se sempre, e cada vez mais nítida, em seus olhos abertos e cansados. Até que por um segundo não viu nada. Parou. O mundo. A dor. O tempo.

E finalmente estava em casa.







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